Três poemas de Luce Fabbri — traduções por Jr. Bellé

Escritora e pensadora anarquista ítalo-uruguaia deixou dois volumes de poesia

Jr. Bellé
Fazia Poesia

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Do arquivo da Biblioteca Libertaria Armando Borghi

Luce Fabbri nasceu em Roma, em 25 de julho de 1908. Filha do militante e intelectual anarquista Luigi Fabbri, recebeu, desde a infância em família, uma educação marcada pelos ideias de solidariedade e liberdade. Em 1928, poucos depois de ter conseguido a graduação em Letras na Universidade de Bolonha, com uma tese sobre Élisée Reclus, fugiu clandestinamente para a França, a fim de se juntar ao pai, um exilado antifascista.

A partir de 1929, estabeleceu-se com os pais no Uruguai, onde permaneceria pelo resto da vida. Docente de História na Escola Média Superior e então — por outros quarenta anos — de Literatura Italiana na Universidade de Montevidéu, depois da morte do pai, ficou à frente da revista Studi Sociali, de 1935 até 1946.

Aos 24 anos, publicou o volume poético I canti dell’attesa (Montevidéu, 1932 — ainda sem tradução para o português). Seguiram-se, então, inúmeros livros de argumento político, entre eles: Gli anarchici e la rivoluzione spagnola (com Diego Abad de Sabtillan); Ginevra 1938; La libertà nelle crisi rivoluzionarie (Montevidéu, 1947); L’anticomunismo, l’antiimperialismo e la pace (Montevidéu, 1949).

Assumiu a direção e a redação dos jornais Rivoluzione Libertaria (1938), Socialismo y Libertad (1943–1944), Opción Libertaria (Orgão do GEAL — Grupo de Estudos e Ação Libertária, Montevidéu, a partir de 1986). Colaborou com jornais e revistas de vários países, em particular com Volontà, Cénit, Garibaldi e A rivista anarchica.

Em 1993, pela casa editorial Biblioteca Franco Serantini di Pisa, publicou o volume Luigi Fabbri. Storia di un uomo libero, comovente reconstrução do percurso político e humano de seu pai. Morreu em Montevidéu, em 9 de agosto de 2000.

Todos os dados acima são uma tradução do breve preâmbulo de seu último livro, Propinqua Libertas, escrito pelo organizador da obra e amigo da autora, Gianpiero Landi. A relevância do Propinqua Libertas se concentra em dois motivos fundamentais: o primeiro é biográfico, pois se trata de sua última obra, já no estertor de uma vida inteira dedicada à luta anarquista e antifascista, e ao aprimoramento das ideias revolucionárias a partir de uma perspectiva feminista; o segundo motivo é poético, afinal Luce escreveu apenas dois volumes de poesia, este Propinqua Libertas e I canti dell’attesa, nos quais está reunida toda a potência lírica da escritora.

Fiz a tradução de alguns poemas do Propinqua Libertas como forma de homenagear Luce e, quiçá, torná-la um pouco mais conhecida fora do círculo anarquista. Para aqueles e aquelas que se interessarem, a versão completa e original do livro está disponível em PDF gratuito no repositório do Anarkio.net.

Os poemas traduzidos

Insônia
para Olga

Estou buscando o sonho
e encontro as quimeras
dispersas na negra geografia.

Te chamo, minha pequena,
mas você vai embora,
separando teus sonhos dos meus.

Eu sei onde te encontrar:
eu adubo, você semente
para a fome do mundo. A matilha
ladra nos dois caminhos.
Mas há mãos estendidas.
Não importa se no final
a que te encontre não seja a minha.

Só quero estar perto dos teus pés
para engolir os charcos
ocultos na luz do grande verão.

Liberdade

Cada hora do inverno que se aproxima
traz um presente.
As veias o recebem,
entra com o sol do meio-dia
que apenas nos aquece
e também vem com os novos frios,
com a chuva já gelada
que cai pesada, cheia de experiência,
e lava até os ossos
aclarando as faces
e fazendo estalar a liberdade.
Já não temo o sorriso das pessoas,
nem me envergonha a palavra amor.
Eu a chamava de solidariedade,
porque amor é uma palavra que se cansa
caso a pronuncie duas vezes, e se esconde.
Mas eu não escondo nada.
Agora digo o que vejo nos olhos
da pequena Mônica descalça:
socialismo é amor e liberdade.

Ainda um pouco

Rumor de voos na soleira escura.
Ainda um pouco; ainda devo pensar
em como posso medir o nada;
ainda devo aprender
a esquadrinhar o fundo do silêncio,
a caminhar na escuridão.

Não estou preparada: me dê tempo
antes de entrar.
Não preciso
que ninguém me empurre: só devo
me acostumar a um sono sem sonho,
ao vazio opaco da eternidade.

Os poemas originais

Insomnio

Estoy buscando el sueño
y encuentro las quimeras
dispersas en la negra geografia.

Te llamo, mi pequeña,
y de pronto te alejas,
separando tus sueños de los míos.

Yo sé dónde encontrarte:
yo abono, tu semilla
para el hambre del mundo. La jauría
ladra en los dos senderos.
Pero hay manos tendidas.
No importa si al final
la que te encuentre no ha de ser la mía.

Solo quiero estar cerca de tus pies
para tragarme los tembladerales
ocultos en la luz del gran estío.

Libertad

Cada hora del invierno que se acerca
trae su regalo.
Lo reciben las venas,
penetra con el sol de mediodía
que nos calienta apenas
y también viene con los nuevos fríos,
con la lluvia ya helada
que cae pesada, llena de experiencia,
y lava hasta los huesos
despejando las frentes
y haciendo restallar la libertad.
Ya no temo la risa de la gente,
ni me avergënza la palabra amor.
Yo lo llamaba solidariedad,
porque amor es palabra que se cansa
si la dices dos veces, y se esconde.
Mas yo no escondo nada.
Ahora digo lo que veo en los ojos
de la pequeña Mónica descalza:
socialismo es amor y liberdade.

Ancora un poco

Frullo di voli sulla solia oscura.
Ancora un poco; ancor debbo pensare
a come possa misurare il nulla;
ancor debbo imparare
a scandagliare il fondo del silenzio,
a caminare nell’ oscurità.

Non sono preparata: dammi tempo
prima d’entrare.
Non c’ è bisogno
che nessuno mi spinga: solo debbo
abituarmi a un sonno senza sogni,
al vuoto opaco dell’ eternità.

A Tenda de Livros, editora focada na difusão e publicação de obras com um olhar anarquista e feminista, disponibiliza um material bastante interessante sobre a Luce (e outras maravilhosas autoras como Maria Lacerda de Moura). Entre os possíveis novos lançamentos da editora, está a tradução completa do Propinqua Libertas.

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