Poesia anarquista

Quando a revolução vira verbo e o verbo vira revolução

Jr. Bellé
Fazia Poesia

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“Faune”, poema visual de Joan Brossa

Este artigo tem um título problemático, é preciso reconhecer. O termo “anarquista” aqui é usado de maneira desavergonhadamente genérica, o que é no mínimo questionável. “Anarquista” pode se referir tanto a poetas engajados no movimento (e que publicaram poemas em jornais canhotos), quanto ao tema da revolução libertária e até mesmo a temas importantes para a luta socialista.

Um dos mais importantes guardiões da memória libertária brasileira atende pelo nome de Edgard Leuenroth: jornalista, tipógrafo e fundador de inúmeros periódicos importantes como A Plebe, A Folha do Povo, Ação Direta, etc.

Durante quase toda sua militância, Leuenroth colecionou os registros do movimento de que fez parte e, como homem das letras, deu especial atenção à literatura e à poesia. Desde 1900, e por cerca de cinco décadas, ele catalogou poemas com temáticas anarquistas publicados na imprensa operária e livre pensadora. Nem sempre eram poemas exaltadores ou que propunham um didatismo ideológico; em sua maioria, eram singelos versos de protesto.

O que dá o tom à compilação de Leuenroth é sua fonte de pesquisa, a imprensa operária, em que apenas companheiros e camaradas eram convidados a publicar. É um recorte temático que favorece a inclusão de diferentes matizes da esquerda revolucionária. Entre os nomes mais recorrentes, estão poetas notoriamente anarquistas: Neno Vasco, José Oiticica, Gigi Damiani, Afonso Schmidt e Raymundo Reis.

Para quem se interessar pelo compilado de Leuenroth, há uma pequena seleção dele no livro A poesia anarquista brasileira, de Yara Aun Khoury, publicada pela editora Monstro dos Mares. Ou simplesmente clica aqui e baixa uma versão em PDF.

Foto do catálogo da Editora Monstro dos Mares

Os esteios

Para efeitos de generalização, a que este artigo é afeito, incluo, por conta própria e à deriva de Leuenroth, uma terceira leva de poesia anarquista: aquela produzida por quem tem afinidades sinceras aos ideais libertários, mas não está vinculado a nenhuma organização. São simpatizantes, apoios — eu os chamo aqui de esteios.

Esteio é algum material, em geral madeira ou ferro, feito para escorar alguma coisa que pode cair, como a parede de uma casa ou a coluna de uma greve. É também como se nomeia alguém que ajuda, apoia, ampara outrem.

Me parece que no eco das vozes desses poetas esteios estão os gritos de muitos poetas engajados. Nas suas entrelinhas está o encanto revolucionário, e através delas ele chegará a mais olhos, despertará chamas impensáveis, inspirará gente distante. A ideia anarquista avança fronteiras se nutrindo do que o próprio anarquismo se nutre: do apoio mútuo, da solidariedade e da diversidade. A poesia anarquista abraça esses três campos — temático, engajado e seus esteios — e, ainda que não formem um volume único e homogêneo, todos os três são capítulos de uma mesma obra.

Arquivo de Jaume Maymó: “Joan Brossa a la 2a Fira de Teatre al carrer de Tàrrega”, 1983

Brossa

Para ser mais internacionalista, e manter este artigo no cordel libertário, exemplifico meu argumento Joan Brossa, poeta e maior expoente do vanguardismo catalão dos meados do século passado.

Com apenas dezoito anos, Brossa lutou a Revolução Espanhola de 1936 ao lado das forças republicanas, mormente compostas por anarquistas e comunistas. Anos depois, conhece o poeta Josep Foix, grande nome do surrealismo literário catalão. Como é de praxe, as vanguardas artísticas daquela época — surrealismo, futurismo, dadaísmo — fizeram com Brossa o que fariam com todo jovem artista daquele tempo: explodiram a cabeça dele.

Brossa passou por todas essas escolas e transcendeu-as. Mergulhou na poesia escrita, depois na poesia visual, na poesia cênica e, por fim, na antipoesia. Seu trabalho chegou ao Brasil, provavelmente, pelas mãos de João Cabral de Melo Neto.

Cabral, além de imenso poeta, foi embaixador brasileiro em Barcelona em 1947 e em Londres em 1950 (dois anos depois, ele foi afastado e teve que retornar ao Brasil para responder a um inquérito, acusado de subversão). Em 1956, volta para Barcelona e de lá vai para Madrid e Marselha (em 1961, volta ao Brasil para ser ministro do Jânio Quadros, cargo que perde em 1964 com o golpe militar), partindo, então, para Genebra, depois Berna, Assunción, Dakar. Por fim, seu último cargo de embaixada fora do país é na cidade do Porto.

Cabral se embebedou da poesia de todos esses países. Um pouco dessa trajetória ele escreveu em poemas, que foram compilados no livro Literatura como turismo, publicado pela Alfaguara. Entre os principais responsáveis por essa bebedeira de Cabral estava Joan Brossa. Eles ficaram amigos e se influenciaram mutuamente e de maneira irremediável.

Foi pelo meio de campo feito por Cabral que Brossa conheceu a vanguarda concreta brasileira e a vanguarda concreta brasileira conheceu Brossa — o que foi um gravíssimo acontecimento sísmico tanto para a vanguarda de lá quanto para a de cá.

A poesia anarquista, encarnada aqui em muitos poemas de Brossa, um poeta esteio da mais altíssima categoria, viajou para longe, para onde a poesia engajada, publicada nos jornais militantes, jamais imaginaria.

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